Por Izaias Gomes de Assis
“Literatura de cordel são livrinhos que são vendidos pendurados em barbantes no Nordeste Brasileiro e são ilustrados com xilogravuras e impressos em papel de má qualidade.” É comum ler essas afirmações em livros, revistas, jornais e em sites na internet como se fosse uma verdade absoluta e indiscutível. Pesquisadores mal informados se dão ao luxo de repetir essas falsas idéias em suas publicações.
É importante saber que a Literatura de cordel no Brasil tornou-se um gênero literário com suas características únicas de métrica, rima e textos desenvolvidos em linguagem coloquial. Ela veio até nós pelos portugueses, é verdade, mas aqui no Brasil só começou ser publicada comercialmente nos fins do século XIX em pequenas tipografias na cidade do Recife, PE. Os paraibanos: Leandro Gomes de Barros e Silvino Pirauá foram os poetas iniciadores deste gênero, que já surgiu com roupagem textual típica nordestina. De lá para cá o cordel se desenvolveu praticamente no Nordeste, pois, na grande maioria, seus escritores são nordestinos e todos obedecem ao estilo empregado por Leandro e Silvino há mais de cento e vinte anos.
O formato dos livretos, tamanho, modo de produção, maneira como são expostos à venda ou material utilizado na confecção bem como suas ilustrações não dão créditos a nenhum escrito ser chamado de cordel, pois o que o caracteriza é o tipo e a qualidade do texto com suas formas definidas pela tradição da poesia popular nordestina. Tentar mascarar isso é encobrir a verdadeira identidade cultural do cordel brasileiro (recomendo ler a apostila de minha autoria -Aprenda fazer um cordel- para entender melhor o assunto). Porém existe muita conversa fiada sobre a verdadeira identidade literária do cordel, vejamos alguns mitos sobre nosso cordel:
1º MITO – “Pra ser cordel tem ser vendido pendurado num cordão”.
O nome Literatura de Cordel era empregado em Portugal desde o século XVII, mas no Brasil essa nomenclatura não era comum até meados da década de 1960, pelo menos nas regiões populares onde nossos folhetos circulavam. O nome Literatura de cordel apareceu em nosso país como um apelido urbano que os intelectuais e pesquisadores deram aos versos, romances e folhetos que se vendiam nas feiras livres do Brasil, em especial no Nordeste, em malas, mesas ou expostos diretos no chão, nunca dependurados em barbantes ou cordas. Imagine um folheteiro amarrando seus livretos num cordão em uma barraca ao ar livre, expostos ao vento constante; isso nunca existiu!
Quando o nome cordel foi pegando no Brasil, por volta dos anos de 1970, os editores de cordel começaram a imprimir a expressão “Literatura de cordel, antiga literatura popular” nas contracapas de seus folhetos e, consequentemente, os vendedores em estabelecimentos fechados começaram a expor os livretos pendurados em cordões e barbantes. Daí então os novos leitores foram se familiarizando com o novo nome (cordel) e os nomes que o povo dava: folheto, romance, versos; foram caindo em desuso.
Resumindo tudo: o apelido veio primeiro do que o costume de pendurar nossos livrinhos. Ainda hoje, tem muita gente (principalmente em cidades interioranas) que não conhece nossos folhetos por este nome Literatura de Cordel e sim como romances, versos ou simplesmente folhetos. È bonito, cultural e aparentemente tradicional expor os cordéis dependurados pregados com prendedores de roupas, mas isso não é nem de longe a principal característica do que é verdadeiramente Literatura de Cordel Brasileira.
2º MITO – “Tem que ser ilustrado com xilogravura.”
Esse é o erro mais grosseiro que se vê nas pessoas que chegam a nossas bancas de cordéis querendo adquirir só folhetos que sejam ilustrados por xilogravuras. Geralmente professores oriundos das regiões Sul e Sudeste ou vindos da Capital Federal têm essa mentalidade. Esses pseudo-pesquisadores repugnam os folhetos com capas bem produzidas que tenham desenhos modernos ou que sejam impressas em policromia; como se a capa fosse o principal atrativo do cordel, quando na realidade não o é.
Devemos lembrar que o cordel começou ser produzido no Brasil no fim do século XIX e até os anos de 1920 era comum confeccionar folhetos com capas cegas (sem ilustração nenhuma). Aos poucos foram sendo introduzidos os clichês de zinco e fotografias. De lá pra cá, até os idos de 1970 pendurou o modo de ilustrar as capas dos folhetos com fotos de artistas do cinema ou até mesmo com a foto dos seus autores ou dos personagens tratados neles (isso se vê nos folhetos atuais, inclusive em cordéis de minha autoria).
A xilogravura é apenas um dos meios de ilustração de cordel; ela tornou-se popular a partir dos anos de 1940, quando o grande editor de cordel João Martins de Athayde encomendou tacos de xilogravura para ilustrar os folhetos de oito páginas que ele editava. Porém Athayde continuou ilustrando os romances de trinta e duas páginas com fotografias de artistas do cinema americano, pois ele achava muito mais chamativo do que traços rudes de preto no papel colorido.
Outro fator que devemos lembrar é que a xilogravura começou ser utilizada nos folhetos para baratear os custos, visto que os clichês de metal eram muito caros e só eram confeccionados nas grandes capitais nordestinas. Muitos poetas começaram a confeccionar suas próprias xilogravuras que no princípio eram toscas e mal acabadas. Só ao longo dos anos foram aperfeiçoando seus dotes artísticos na madeira.
A partir dos anos de 1970 grandes xilógrafos de renome nacional começaram a difundir suas xilogravuras junto com seus folhetos e defender ferrenhamente a xilogravura como única forma válida de ilustrar a literatura de cordel; por isso é comum ver e ouvir pessoas mal informadas sobre o assunto. A Editora Luzeiro (antiga Prelúdio) com sede em São Paulo, desde a década de 1950 vem produzindo cordéis com capas bem elaboradas e coloridas. Um dos maiores cordelistas do país Manoel D’Ameida Filho editou quase toda sua produção cordelística nesta editora. Será que ele não era cordelista por causa das capas de seus cordéis? Quem nunca leu os clássicos de Almeida, conhece muito pouco sobre a riqueza literária do cordel, pois ele era um gênio nessa arte de compor versos rimados e metrificados como manda o figurino.
3º MITO – “Tem que ser impresso em papel jornal”.
É verdade que na sua totalidade, até a popularização das máquinas de tirar xérox, os cordéis eram impressos em papel jornal e na maioria das vezes no tamanho de um quarto de ofício (11x16cm), com exceção dos cordéis produzidos pela Editora Luzeiro, que matem um formato maior (13,5x18cm) até os dias de hoje. Porém assim como a xilogravura veio para diminuir os custos na produção do cordel, o papel jornal também se tornou forte aliado nessa empreitada de baratear a produção. Os folhetos impressos em pequenas gráficas deram acesso aos poetas sem muitos recursos financeiros de verem seus textos publicados, coisa que era quase improvável acontecer em grandes editoras.
Com o advento do computador pessoal e da internet, o cordel começou a ser novamente popularizado a partir dos fins dos anos de 1990 e os folhetos começaram a ser reimpressos em pequenas tiragens em impressoras caseiras tipo jato de tinta ou em máquinas de xérox das lojas copiadoras a preços de centavos a unidade. Com isso os donos de editoras de cordel que sobreviviam ou os que apareciam no momento começaram a criticar tais atitudes, pois diziam (e alguns ainda hoje dizem) que descaracteriza a verdadeira identidade do cordel. Eu torno a perguntar: qual é a verdadeira identidade do cordel? O tipo de papel é que o valida como o tal?
Bom seria que todos os poetas de cordel publicassem seus folhetos em papel jornal, mas tem um grande entrave aí: só quem roda esse tipo de papel são gráficas de médio e grande porte e as tiragens tem que ser de milhares de exemplares para compensar. Nesse caso é melhor o poeta ir à copiadora da esquina e mandar xerocar cinco reais de cordel (que ele recebe na mesma hora) e “meter brasa” nas vendas. O xerocordel (nome pelo qual são apelidados os folhetos xerocados) na sua maioria são impressos em ¼ de A4, pois esse é o formato de papel mais usado hoje em dia no mercado. Muitos não gostam de ver seus textos publicados dessa forma porque alegam que as xerocópias se apagam com o tempo e desejam ter suas obras perpetuadas por longos tempos.
O poeta cordelista que vive da vendagem dos seus folhetos não está interessado em ser lembrado duas ou três décadas depois de sua morte, ele está preocupado em ganhar dinheiro e sustentar sua família agora. Hoje em dia os meios de comunicação, a memória do povo e os pesquisadores de cordel se encarregaram de perpetuar os nomes dos grandes cordelistas, não importa se publicaram em papel jornal ou colchê 75g.
Vida eterna ao cordel!
4º MITO – É escrito em linguagem matuta.
Alguns poetas ditos eruditos e/ou pesquisadores que não lêem cordel (pois existem muitos desse tipo) afirmam que o cordel é escrito na linguagem do matuto. Outros dizem que nossos folhetos são escritos por semi-analfabetos. É verdade que muitos poetas populares não tinham muita instrução escolar, mas isso não os desclassificam como bons glosadores ou contadores de histórias. Quase todos eles eram autodidatas e escreviam de maneira clara e objetiva numa linguagem coloquial, a mesma adotada nas novelas e nas traduções de filmes estrangeiros aqui no Brasil.
Um grande poeta popular do Brasil, o cearense Patativa do Assaré, foi cantador, cordelista e poeta matuto; ficou conhecido pela sua poesia matuta e isso confundiu muita gente que associava o cordel com a poesia matuta, que na realidade têm a mesma característica estrutural, mas são distintas na linguagem. O cordel é escrito em linguagem coloquial e a poesia matuta, como o nome já diz, em linguajar bem caipira, à moda nordestina e na maioria das vezes em primeira pessoa. O próprio Patativa sabia dessa diferença, tanto que os poucos cordéis que ele produziu foram escritos em linguagem coloquial e não em matuta. Você vê essa diferença claramente no seu folheto intitulado Aladim e a lâmpada maravilhosa.
Em mais de cem anos de literatura de cordel no Brasil, são poucos os folhetos que têm falas matutas, e os que a usam geralmente é fazendo trocadilho ou mostrando duplo sentido com as palavras como é o caso do cordel de José Pacheco intitulado O vendedor de maxixe. Outro exemplo famoso é A Briga de dois matutos por causa de um Jumento, de Enéias Tavares Santos. Na atualidade existem alguns poetas matutos que publicam suas poesias em formato de cordel e até o chamam de cordel, porém eles são minorias e exceção a regra geral.
5º MITO – Só fala de coisas relacionadas ao meio rural
Os pseudo-pesquisadores (repito: os que não lêem cordel) afirmam que os poetas cordelistas na sua maioria retratam em seus textos lugares, personagens e temas rurais; e até criticam cordéis com temas modernos tipo: Alien e predador versus Lampião, de minha autoria ou O cangaceiro espacial, de autoria do cearense Klevisson Viana. O poeta-mor do cordel Leandro Gomes de Barros escreveu na primeira década do século XX um folheto chamado: O Cometa, que anunciava a passagem do cometa Halley pela Terra em 1910 e prenunciava uma catástrofe no planeta. Romances como Valdemar e Irene e O Pavão Misterioso, entre outros, não são narrados em meios rurais; sem falar dos clássicos que narram histórias de dragões, fadas, animais encantados e princesas, que não situam suas histórias no campo, muito menos são narrativas que ocorrem no espaço nordestino.
Sempre existiram os folhetos noticiários que serviam como jornal poético e que tratavam de todo tipo de assunto, desde a morte de Getúlio Vargas, passando pela construção e fundação de Brasília até o tri-campeonato mundial da Seleção brasileira de futebol em 1970. Além dos cordéis ecológicos, os que tratam de saúde, os políticos, os fantásticos, os satíricos, etc. O cordel pode ser utilizado (como sempre o foi) para diversos fins; desde que escrito de forma correta ele é válido, até mesmo os cordéis eróticos considerados de conteúdos impublicáveis.
O cordel sempre foi moderno e atual no tempo de sua publicação, e é bem verdade que os cordelista, na sua maioria, são poetas oriundos do meio rural, principalmente do Nordeste; por isso é comum todo poeta popular ter textos que relembrem sua terra natal, mas isso não significa que só escrevemos coisas relacionadas ao campo.
6º MITO – Só quem escreve cordel é nordestino
Todo mundo sabe que o celeiro cordelístico do Brasil é e sempre será a região Nordeste; pois foi por aqui que ele surgiu e se popularizou pelo país, principalmente com as sucessivas migrações nordestinas que ocorreram ao longo do século XX. Os primeiros e os grandes cordelistas brasileiro foram, sem dúvida, nordestinos como Leandro Gomes de Barros, Silvino Pirauá, Chagas Batista, João Martins de Athayde, José Pacheco, José Camelo, Manoel D’Almeida, Apolônio Alves, Francisco Sales Arêda, e outros tantos. As grandes folheterias também se localizavam no Nordeste, como as de Leandro Gomes de Barros e de Athayde, ambas em Recife – PE, a de José Bernardo no Juazeiro do Norte – CE, e a de Manoel Camilo em Campina Grande - PB. Das sete maiores editoras de cordel na atualidade cinco estão no Nordeste: A Tupynanquim em Fortaleza CE, A Queima-Bucha em Mossoró RN, a Chico Editora em Parnamirim RN, a Coqueiro em Recife PE e a J. Borges em Bezerros PE; e só duas perduram no Sudeste: a Luzeiro em São Paulo SP, e a ABLC no Rio de Janeiro RJ.
Com a expansão do cordel Brasil afora foram surgindo grandes poetas em outras regiões, obedecendo ao estilo peculiar dos folhetos nordestinos. Em Belém PA, na região Norte, existiu até 1949 uma Editora chamada Guajarina, que era especializada em publicar cordel de autores locais e dos grandes clássicos nordestinos. Lá na capital do Pará eu conheci o grande cordelista paraense Juraci Siqueira, que tem mais de duzentos folhetos publicados dentro dos mais rígidos padrões nordestinos. Na Região Sudeste, conheci no Rio de Janeiro o carioca Victor Alvim (o Lobisomem), um jovem discípulo de Gonçalo Ferreira, que escreve seus cordéis sobre capoeira com a mais perfeita simetria de métrica e rima como se exige num autêntico cordel.
O paulista Arlindo Pinto de Souza um dos proprietários da antiga Editora Prelúdio era um exímio cordelista, assim como seu conterrâneo Hélio Cavenaghi, que também escrevia pela Editora Luzeiro. A ABLC (Academia Brasileira de Literatura de Cordel) tem alguns de seus membros oriundos de vários estados fora do Nordeste. Portanto, o cordel pode e deve ser escrito do Oiapoque ao Chuí, por qualquer cidadão brasileiro ou do mundo, mas só será reconhecido como um cordel genuinamente brasileiro se for escrito com as mesmas técnicas que os verdadeiros poetas populares nordestinos o fazem desde os fins do século XIX.
7º MITO – O cordel é poesia inferior
Muitas pessoas, que só conhecem os pequenos folhetos de oito páginas de poetas fraquinhos, formulam conceitos errôneos sobre nossa forma literária, considerando-a de baixo valor. Manoel Bandeira, em um de seus poemas, já elogiava os poetas populares os considerando superiores. Carlos Drumonnd de Andrade considerou Leandro Gomes de Barros como o verdadeiro príncipe dos poetas brasileiros, e vez de Olavo Bilac. Manoel D’Almeida Filho e Apolônio Alves dos Santos eram grandes poetas tão bons quanto os da chamada poesia erudita. Poucos ditos “eruditos” teriam ou têm capacidade intelectual de escrever histórias como Vicente o Rei dos ladrões ou O herói João Canguçu, clássicos dos cordelistas supramencionados.
O cordel é uma narrativa poética em linguagem popular, isso não a difere em nada de outro tipo de poesia. O que faz a diferença é a qualidade poética e criativa do autor. Um grande poeta cordelista da atualidade é o potiguar Antonio Francisco, que escreve textos brilhantes dignos de figurar em qualquer estante universitária, lado a lado com qualquer livro de poesia brasileira ou mundial; pois são ricos em figuras de linguagem e crítica social e da mais pura essência poética que um ser humano pode ter (recomendo ler dele o folheto: Os animais tem razão). Grandes nomes surgem na atualidade adaptando textos clássicos da literatura universal para o cordel, não porque nosso folheto é rude ou de baixa qualidade literária, mas sim porque é melhor de ler e memorizá-lo.
Hoje as grandes editoras estão dando mais atenção ao cordel publicando textos de poetas já renomados como Arievaldo Viana, Rouxinol do Rinaré, Marco Haurélio, Bráulio Tavares e Patativa do Assaré, em formato de livros que estão invadindo as prateleiras das livrarias brasileiras. Há anos nossos poetas de cordel vêm sendo estudados na França, em Portugal, na Alemanha e em outros países por estudiosos que reconhecem o valor literário do cordel brasileiro que é ímpar no mundo.